“No caso das figuras históricas, pré-fotográficas; é como se eu fosse um fotógrafo do século XVI, pronto a participar em seu processo de memorialização.”[1]
Se esta fotografia lhe parece viva, seria melhor reconsiderar o que significa estar vivo, aqui e agora.”[2]
A ingenuidade da crença homológica entre o que é representado fotograficamente e o que existe no mundo real é salientada por Arlindo Machado em sua obra. “A Ilusão especular”. Machado (1984, p. 49) salienta que esta crença no determinismo da representação fotográfica nada mais representa do que a crença em um estereótipo do real: “aquele a que nos viciou a tradição figurativa”. Foi justamente a tradição figurativa de retratos renascentistas que inspiraram Sugimoto a retratar esculturas de cera do museu londrino “Madame Tussaud´s”.
Nessa série de fotografias, Sugimoto rearticula o antigo diálogo entre a pintura e a fotografia, justamente porque as figuras de cera são elaboradas a partir de retratos pintados realizados durante o século XVI, das seis esposas do rei Henrique VIII. No documento acessível online “Behind the scenes” [3] no site do Museu MadameTussaud’s londrino, existem explicações esclarecendo como os artesãos do museu conseguem sugerir um alto grau de realismo na reprodução das personalidades em cera. Se a pessoa ainda estiver viva e tiver disponibilidade, suas medidas são registradas detalhadamente e várias fotografias são feitas. Se a pessoa já for falecida ou sem disponibilidade para ir até o museu, os artesãos trabalham a partir de referências imagéticas delas: fotografias ou, no caso dos membros da família real, pinturas e gravuras.
O pintor retratista da corte inglesa, célebre pela arte fidedigna de retratar seus sujeitos, Hans Holbein, serviu como inspiração para que Sugimoto desenvolvesse este trabalho[4]. Sugimoto estudou nas pinturas os efeitos de luz, assim como a linguagem de estruturação do retrato renascentista. Isolou as esculturas de seu local de exposição, colocando-as diante de um fundo neutro, fotografando-as com sua câmera 8X10.
Os resultados surpreendem pelo efeito de realismo. Espantosamente, o fotógrafo parece adicionar vida às figuras: as fotografias parecem evocar uma presença real. Há um poderoso argumento do discurso fotográfico que tem, no retrato, um dos maiores paradigmas da natureza realista da fotografia.
Se a fotografia, para Roland Barthes, parece impossível de ser compreendida quando deslocada de seu sujeito fundante (daquele que emana os raios de luz em direção à superfície foto-sensível); o retrato fotográfico se estruturaria pela contigüidade entre referente e representação.
Mas, no caso de retratos de esculturas de cera, os referentes originais, isto é, o rei e as rainhas que viveram durante o século XVI na Inglaterra nunca se postaram efetivamente frente às lentes de Sugimoto. O resultado imagético que se observa pode ser explicado considerando-se, no mínimo, três instâncias reprodutivas de traços fisionômicos dos referentes: a pintura, a escultura e a fotografia.
Até mesmo Walter Benjamin, que imputa à reprodutibilidade o esvaziamento simbólico da obra, enxerga nos retratos um atestado de presença. Assim se refere à fotografia de retratos: “Sua última trincheira é o rosto humano... Na expressão fugidia de um rosto de homem, as fotos antigas dão um lugar à aura por uma última vez.” (1969, p. 26).
A idéia de um referente original, de uma presença parece assombrar fotografias daqueles já falecidos. Hans Belting (2005) sugere que os retratos dos mortos têm como função introduzir um novo status para os falecidos: seu estado imagético. É importante ressaltar que a imagem utilizada no Japão para representar uma pessoa falecida possui um significado simbólico fundamental. Utilizadas inicialmente como peças de devoção de membros da nobreza japonesa, atualmente, fotografias são amplamente utilizadas em cerimônias funerárias ou expostas em memoriais. As fotografias de pessoas já falecidas são denominadas de iei, cujo significado poderíamos traduzir por: “uma figura deixada para trás neste mundo”[5] (Naoyuki, 2003, p. 27). Estas fotografias são fundamentais na realização de cerimônias funerárias às quais os japoneses se referem como: “um encontro face a face com o falecido” (Naoyuki, 2003, p. 27). Ressalte-se que, diferentemente de outras culturas, a imagem utilizada para representar o morto é sempre um retrato da pessoa quando viva.
Parafraseando a famosa expressão de Roland Barthes, “aquele que era”[6] se torna retrospectivamente presentificado através de seu retrato. A imagem nos traz de volta o sujeito: alcançamos “os que foram” por meio das suas imagens petrificadas. Contudo, subsiste uma distância intransponível entre cópia e original, referente e representação, passado e presente.
Sugimoto brinca com o espectador, ressaltando que, se estas fotografias nos parecem vivas, seria melhor reconsiderar o que significa estar vivo. Douglas Crimp (1993, p.111) explica o fascínio por esse tipo de trabalho, salientando que o desejo da representação só existe na medida em que o original é, para sempre, adiado.
[1] “In the case of the historical, prephotographic-era figures, it’s as if I’m a sixteenth century photographer ready to participate in their memorialization”. BASHKOKOFF, Tracy. The exactness of the world: a conversation with Hiroshi Sugimoto. In: SPECTOR, Nancy (org). Sugimoto: Portraits. New York : Guggenheim Museum Publication, 2000, p. 28.
[2] “If this photograph now appears lifelike to you, you had better reconsider what it means to be alive here and now”. http://www.sugimotohiroshi.com/wax.html
[6] A paráfrase se refere à famosa expressão de Roland Barthes no livro “A câmara clara”: “isso foi” (1984, p. 115).
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